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sexta-feira, outubro 6

o direito à vida do vitor hugo

O Vitor Hugo morreu. Levou um tiro no pescoço às duas da manhã de terça-feira, no Porto. Tinha 21 anos e, dizem os amigos, vinha de “uma noite de copos”.
Eram quatro no carro, entre os 17 e os 21 anos. À uma da manhã, a polícia mandou-os parar. Não pararam. Porquê? O condutor diz que o seguro do carro não estava em dia, que tinham umas pedras de haxixe e talvez álcool a mais. Ao fim de uma hora de perseguição, a polícia abriu fogo. Cinco tiros de metralhadora direitos aos ocupantes do banco de trás. Um acertou no pescoço do Vitor Hugo, dois no Bruno, de 18 anos, que sobreviveu.

O agente que disparou tem 29 anos e é da GNR. Terá dito à Policia Judiciária que só entrou na perseguição no fim, que julgava só haver duas pessoas no veículo em fuga e que queria acertar nos pneus mas a inclinação da rua provocou um desvio na trajectória dos projécteis. A GNR alega que os disparos se justificam por ter havido uma tentativa de atropelamento de um dos seus militares, condução em contramão, passagem de sinais vermelhos, e uma arma deitada pela janela (apreendida, mas cuja posse é negada pelos jovens). Que o objectivo não era atingir pessoas mas imobilizar o carro, que representava “perigo para a segurança pública”.

Como qualquer morte violenta, esta está sob investigação. O agente que disparou foi indiciado por um homicídio com dolo eventual e pelo mesmo crime na forma tentada. Mas um representante sindical já veio a público certificar que a actuação dos militares lhe pareceu “correcta”. Nestes casos, há invariavelmente um representante sindical que, antes sequer de o inquérito começar, já sabe que o resultado só pode ser favorável ao agente ou agentes envolvidos.

Também é costume, nestes casos, falar-se de “perigo para a segurança pública” e de “desobediência à autoridade”. E, sempre que se trata de justificar o uso de arma de fogo contra veículos em movimento, aconteceram “tentativas de atropelamento” ou mesmo “disparos contra os agentes”. O que não é comum é alegar que deitar uma arma pela janela é motivo para se ser baleado – esta é nova. De resto, o caso segue a cartilha habitual das polícias portuguesas na justificação do uso de armas de fogo, a que nunca falta a recordação dos agentes mortos em serviço – como se o facto de haver meliantes armados e capazes de tudo que às vezes atiram contra a polícia justificasse qualquer disparo policial, em qualquer circunstância.

Dessa cartilha, bem conhecida de quem tenha feito alguma investigação sobre o assunto, consta outro extraordinário facto: os polícias que disparam são invariavelmente apresentados como se não fizessem parte de uma cadeia de comando. Como se para disparar uma metralhadora no meio de uma perseguição não fosse suposto haver uma ordem nesse sentido. Como se não houvesse um regulamento do uso da arma de fogo que estabelece que esta só pode ser disparada para “proteger vidas humanas” e como se não fosse responsabilidade da corporação escolher agentes que sejam capazes de compreender essa noção básica e formá-los de modo a que a tenham sempre presente.

Esta é uma cartilha que faz a apologia do uso ilegítimo e criminoso das armas confiadas aos polícias e da inimputabilidade das chefias, uma cartilha que, em nome de uma noção deplorável da “autoridade do Estado”, sobreviveu a sucessivos governos democráticos, acumulando mortes bárbaras e injustificadas. Só em 2006, até agora, pelo menos três jovens perderam a vida devido a disparos mal fundamentados da PSP e da GNR. Os processos de averiguação correm ainda, mas não surpreenderá – faz parte da cartilha – que terminem inconclusivos ou com uma acusação de negligência, sem uma beliscadura nas chefias nem uma palavra de pedagogia das instâncias políticas. Num país que se prepara para debater os direitos da vida intra-uterina, o direito à vida dos Vitor Hugos não faz ondas. O dono do nome, autor d’ Os Miseráveis,poderia explicar porquê.

(texto de hoje do contra os canhões, no dn, que pelas inexplicáveis razões do costume não está disponível na net)
|| f., 16:41

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