Glória Fácil...

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segunda-feira, abril 24

amos oz

há catorze anos, fui a israel pela grande reportagem. tinha conhecido amos oz num jantar literário, em lx, e tinha trocado algumas palavras azedas com ele sobre israel. depois, quando fui lá, pedi-lhe uma entrevista. fui a casa dele. lembro-me de uma espécie de cave cheia de livros, oescritório dele, onde passámos horas a conversar, do autocarro que apanhei em jerusalém e da metralhadora que um soldado de 18 ou 19 anos me pôs sobre os joelhos, sem pedir licença ou sequer um sorriso ou um olhar, quando se sentou ao meu lado, como quem diz: estás aqui, fazes parte disto, desta guerra. é possível que quem vai a israel fique a sentir isso para sempre -- eu sinto. mas, como diz a outra, isso agora não interessa nada. o que eu queria era falar de amos oz e de como ele definiu o que é ser judeu e o que é israel e o que é 'o processo de paz'. e aqui vai:


'O passado tem resposta para tudo. Mas nunca coincide nas versões. Quem começou, quem chegou primeiro. Quem tem direito a Jerusalem. Quem arrisca mais. E quem vai ceder. À medida que decorre tempo sobre a data em que pela primeira vez as delegações palestiniana e israelita se sentaram a uma mesa, é mais difícil encontrar quem acredite que vai sair dali alguma coisa. Entre os homens de boa vontade, claro, se é que tal coisa existe. Sobretudo aqui.
"Isto não é uma disputa metafísica. É algo muito mais simples: um conflito de terras, de propriedades. A esquerda amante da paz, na Europa, parece não acreditar em conflitos, apenas vê desentendimentos. Pensam que isto é uma questão de terapia de grupo. O que os israelitas e palestinianos precisam é de um divórcio, não de uma lua de mel. A questão é perceber como vai ser possivel continuar a viver no mesmo apartamento." Amos Oz tem a postura pragmática de alguém que acalentou muitos sonhos e teve a infelicidade de concretizar alguns. É um dos escritores mais relevantes de Israel. E dos mais polémicos, também. A direita não gosta dele e ele não gosta da direita. Shamir? "É um dos piores governos que tivemos. Sobretudo em termos económicos e no que respeita às negociações. Mas estou mais optimista que nunca sobre o processo de paz. Só não me pergunte quando."
Nasceu em Jerusalem, há 53 anos. Nos livros descreve-lhe as ruas de memória, a luz da manhã, os cheiros e as lojas, os imigrantes russos e polacos, os árabes e o domínio britânico. "Eu fui um miúdo da intifada a gritar e a mandar pedras aos ingleses." Depois foi a guerra. Os exércitos todos da zona contra um país recém-fundado. "Passámos fome, fomos bombardeados... Sabiamos que se perdessemos, íamos morrer. Ainda hoje. Se Israel perder uma vez, quer dizer genocídio." O que é ser israelita? Repete a pergunta, a meia voz. "Para mim...É uma escolha. Em primeiro lugar, por causa da lingua, que é belíssima. I belong to my language." E ser judeu? "Essa é uma questão metafísica. Qualquer ser humano que seja maluco o suficiente para se chamar judeu é um judeu." E Israel, o que é? "Para mim, representa uma data. Foi há 45 anos, a 29 de Novembro de 47, quando as Nações Unidas decidiram dividir a terra entre israelitas e árabes. Só havia um rádio na zona. Eram 2 da manhã e estavam 2000 pessoas na rua para ouvir a transmissão, em silêncio. Devia ter visto a alegria. Não era o Carnaval do Rio. As pessoas choravam como crianças. As lojas abriram-se, distribuiram-se bebidas. Às 4 da manhã, o meu pai meteu-me na cama e deitou-se ao meu lado. Percebi que ele estava a chorar. E disse-me: 'Filho, quando eu tinha a tua idade, na Rússia, apanhava na escola por ser judeu. E o meu pai, e o meu avô. Tu podes apanhar na escola, mas não por seres judeu.' Até hoje, estas palavras são para mim a raison d'être do estado de Israel."
Na adolescência, Amos Oz rebelou-se contra o pai e foi viver para um kibbutz. Entrou nas duas guerras que se seguiram, 67 e 73. Na sua opinião, foram guerras de sobrevivência. Mais uma vez. "Sou pela paz, mas não sou um pacifista. Não sou adepto de estender a outra face." Hoje vive com a mulher e os filhos, em Arad, uma cidade em expansão no meio do deserto, perto do mar morto. Feia como quase todas as cidades israelitas, construídas com carácter de urgência e um dinamismo assustador. Mas ele fala dela com o encanto de alguém que assiste a um milagre, o mesmo milagre que perpetua o seu país. "Grandes esperanças é a alcunha do estado de Israel."
Um dia, num livro, disse que se se iniciasse um processo de paz Israel se partiria ao meio. O que é que se está a passar? "Uma guerra civil, mas com palavras, não com tiros. "Quem contra quem? "É mais um mosaico que uma barricada. Sobretudo por uma questão de prioridades. Nenhuma outra nação na História teve de optar entre democracia e terra." Como é que vê a questão dos territórios? "Depende. Penso que Israel tem problemas legítimos de segurança nos Golan, por exemplo. E que os terrenos desocupados devem ser negociados." E os colonatos? "Não deviam nunca ter sido construídos. E devem parar agora. No caso de Gaza, se eu fosse o 1º ministro de Israel, saía de lá no dia 1 de Abril e entregava a zona às UN. Não temos nada que fazer ali." Aceita a ideia de uma nação palestiniana? "O primeiro passo é reconhecer que o outro é quem ele pensa que é. É irrelevante dizer que os palestinianos não eram uma nação há 100 anos. Não eram. Ou que foi Israel que os fez pensar em si próprios como tal. Não vamos pedir-lhes direitos de autor." Dialogaria com Arafat, se fosse preciso? "Não gosto dele. Mesmo nada. Mas se falar com ele significasse a paz, falava já amanhã. No Médio Oriente, quando as pessoas dizem nunca, as pedras começam a rir."'

(excerto de morrem mais de mágoa, gr, 1992)
|| f., 18:02

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