Glória Fácil...

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domingo, março 7

Velas, Madalena

Talvez me tenha cruzado com André Bonirre, um dos que escrevem na Natureza do Mal, este Verão nos Açores. Tenho dúvidas se o André era mesmo o André, mas o problema é meu, porque confundo rostos fora do contexto e já invoquei, por falta de memória, santos nomes em vão. Descontextualizadas, as personagens atropelam-se como numa “sitcom” e a Madame Bovary é minha prima. Talvez o André não fosse o André, o que é o mais provável, mas mesmo o André não sendo o André vou continuar a contar a história porque foi para isto (contar quaisquer histórias mesmo falsas ou monocórdicas ou as duas coisas ao mesmo tempo) que abri agora o "blogger".
Estávamos no cais de Velas (São Jorge) e queríamos ir para a Madalena do Pico. O “Princess of Seas” ou o que o valha tinha avariado, e exaustos e espojados em cima de uma bagagem excessiva para quem já andava há uns dias naquilo, de barco para barco, comíamos no chão. John partia queijo com a mão e gozava com a minha recusa em me livrar do (como lhe chamava) “lastro sentimental”: uns livros da Terceira, muito pesados, uns jornais velhos, alguma parafernália de “giftshop” delicada.
Só tínhamos queijo e children fast food, (filipinos, acho) para comer à mão. As dores de estômago começavam a provocar-me saudades do Luís, o médico hipocondríaco que sofre de uma espécie rara de agorafobia e só na sua ilha mínima pode sobreviver.
O barco, que tinha avariado a meio do canal, não tinha solução rápida. Ficámos à espera de outro que, daí a três horas, chegaria do Faial. Falávamos alto, por falta de assunto.
E então o André (ou outra personagem) que estava sentado à minha beira, perguntou-me se era açoriana, o que muito orgulho me deu por causa da pronúncia. No grupo central, eu tento imitar a pronúncia, o que não é possível em São Miguel.
- Não, sou de ‘lá fora’. (Disse eu, julgando ser André açoriano e desejando copiar o seu dialecto. “Lá fora” igual a Continente)
- Ah, mora no estrangeiro! (Como André não era açoriano não percebeu o ‘lá fora’ e julgou que eu fosse emigrante, o que também é muito banal).
Depois de nos termos desiludido mutuamente, ao constatarmos, no chão das Velas, a nossa continentalidade, André contou-me que andava à procura de uma poetisa perdida nos Açores. Eu falei-lhe do Luís que gostava de Emanuel Félix – e pareceu-me ele ser sensível à história do médico hipocondríaco.
Antes do Cruzeiro do Canal chegar, ainda me contou de uma tourada que tinha assistido no Cais do Pico (S. Roque) em que o touro caiu à água. Foi muito difícil evitar que o touro se afogasse.
Quando chegou o barco, no meio da confusão – pensei que com tanto peso ou a criança, ou eu, ou o evitável, segundo John, “lastro sentimental” cairiam à água como o touro – e perdi o André. Pelo canal S. Jorge – Pico, a noite estava estranhamente bela e os faróis indicavam o Cais mais perto, a Madalena mais longe, a Horta assim inalcançável. As palavras, quando morrerem, ficam-se neste mar mais central e não em Ponta Delgada como quer o “Bartleby” de Vila-Matas.



|| asl, 22:57

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